Quando subiu ao poder, laureado vencedor da Guerra Civil Espanhola em 1938, o general Francisco Franco (1892-1975) instaurou um processo ditatorial que teria fim apenas 35 anos mais tarde com sua morte. Neste meio tempo, a Espanha viveu momentos controversos, no qual militares promoviam violências, ameaças e saques em casas e comércios ao redor do país.
Com uma economia em frangalhos, o governo caudilho contava com bens de cidadãos para construir um amortecimento nas contas públicas. Foi nesse cenário que o jovem José Pallas (1934-2021), então com 17 anos de idade, deixou a pequena cidade da Galiza, região noroeste da Espanha, rumo à Argentina, onde um tio lhe esperava.
O difícil processo imigratório do governo de Juan Domingo Perón (1895-1974), contudo, impediu que o jovem conseguisse asilo em terras argentinas, o que fez com que ele, e mais um grupo de imigrantes, desembarcassem no Porto de Santos, no litoral paulista em 1951 “com uma mão na frente e outra atrás”, como lembra José Carlos Pallas, filho de José e herdeiro de seu principal bem, o cinquentenário restaurante Bacalhau, Vinho & Cia.
“Ele carregava só um pequeno baú de madeira, que ganhou do chefe quando trabalhava numa serraria na Galiza, e uma dívida com o pai, que vendeu um pequeno pedaço de terra para pagar a passagem”, conta José, que guarda a história do pai imigrante espanhol que prosperou por meio do empreendedorismo, como uma espécie de lema.
“A gente sempre vai começar de algum lugar. Às vezes lá de baixo, mas se não começar, não tem como saber se vai crescer ou não.” Hoje o empresário divide as operações de duas unidades do restaurante de comida portuguesa com o filho, o chef Caíque Pallas. Pai e filho mantêm uma sociedade bem sucedida desde 2016, quando o restaurante voltou para as mãos da família após 12 anos sob outra direção.
A história de José Pallas tem início no Brasil como a de muitos imigrantes fugidos de guerras, crises humanitárias e ditaduras políticas. Ao desembarcar em Santos, conseguiu um emprego em uma carpintaria, onde poderia colocar em prática os dotes que desenvolveu em sua terra natal. O fim do mês, contudo, mostrava uma situação complexa.
“Ele não conseguia guardar dinheiro. E, para um imigrante, fazer uma poupança era a coisa mais importante do mundo”, diz José Carlos. Ao saber que os amigos que fizera no navio e trabalhavam no meio gastronômico ganhavam menos, mas guardavam mais dinheiro, Pallas decidiu mudar de vida e conseguiu um emprego em um restaurante da cidade, e agora ganhando menos, ao menos economizava com a comida.
O ex-serralheiro teve, então, a chance de recomeçar no novo país, e assim, como que por acidente, seu caminho cruzou com o da gastronomia. A história de seu relacionamento com o meio, contudo, é muito mais rudimentar.
Ao conseguir reunir uma quantia em dinheiro, seguiu o conselho de um corretor de imóveis e se uniu em sociedade com outros três imigrantes (dois espanhois, como ele, e um português), e em 1973 comprou o Bacalhau, Vinho & Companhia, restaurante que existia há muito pouco tempo especializado – como o nome sugere – em bacalhau.
“Ele tinha recém-aberto e fazia um relativo sucesso. Naquela época, o restaurante não era uma casa de comida portuguesa, era apenas uma casa de bacalhau com poucos pratos, mas uma clientela que começava a crescer”.
O divisor de águas para o sucesso do espaço foi o apoio inesperado de Barbosa Filho (????-2007), radialista esportivo que comeu no restaurante por acaso, gostou e passou a falar em seu programa da casa na Barra Funda. O comunicador falava nisso diariamente, o que fez com que o público aderisse. Mas foi a qualidade que fez o público ficar.
“Tinha um bacalhau grelhado à moda da casa que era um sucesso porque era um bacalhau pré-frito e grelhado na chapa e tinha uma crosta grande, chamava atenção porque ele era alto e de boa qualidade”, diz José Carlos, que ainda serve variações da receita, tanto no endereço original, na Barra Funda, quanto no Itaim Bibi, o bairro da região oeste que recebeu o restaurante no novo milênio.
José Carlos se orgulha de manter seus pratos com o mesmo tamanho, a mesma qualidade e uma variação de preços baixa. Mesmo durante as sucessivas crises que o restaurante enfrentou, fossem elas políticas e econômicas, fossem crises trágicas, como o incêndio que quase destruiu seu endereço original, o Bacalhau, Vinho & Cia. buscou sobreviver.
“Isso se deve ao público. As pessoas construíram uma memória afetiva com a comida, mas também com o restaurante”, diz. “Antes da pandemia, nós recebíamos muitos idosos, pessoas com cuidadora do lado, de cadeira de rodas, com andador… São pessoas que levavam os filhos para comer quando eram mais jovens, e hoje os filhos é que os levam para relembrar de outros tempos. É uma coisa muito tocante”.
Entretanto, não é só do fluxo de clientes que um negócio sobrevive. Há no Bacalhau, Vinho & Cia. a cultura do investimento estritamente necessário. A casa mantém um fundo para emergências e busca economizar o máximo possível dentro de suas condições. Mesmo que todas as condições estejam contra.
“O bacalhau é um produto muito sensível nas crises. É a primeira coisa que as pessoas cortam, porque ele é um prato troféu. Você lembra do bacalhau quando você tem algo bom para comemorar, ele é um termômetro. Quando está todo mundo bem humorado, otimista, a economia indo bem, o bacalhau vai bem; quando as coisas vão mal, as empresas quebram, tudo de ruim acontece, o bacalhau vai mal”.
O diagnóstico vem na esteira de memórias em que o restaurante correu o risco de fechar, como no período da hiperinflação durante o governo de José Sarney (1985-1990), quando um prato custava quase um salário mínimo. Houve ainda o confisco da poupança no período de Fernando Collor de Mello (1990-1992) e o impeachment de Dilma Rousseff (2011-2016). Nesse contexto, a pandemia de Covid-19 de 2020 foi um trauma superado sem tanta complexidade.
“Claro que foi difícil”, relembra Caíque Pallas, “mas nós conseguimos nos reinventar muito rapidamente, e passamos por esse período sem precisar mandar ninguém embora. Foi uma vitória”. O chef, que decidiu estudar gastronomia após conviver com a avó na cozinha e no ambiente das lanchonetes e bares que o pai havia aberto ao longo dos anos, lembra que a vitória teve um gosto agridoce.
O bacalhau é um prato que viaja bem, não perde a qualidade. E as pessoas trancadas em casa, sem poder sair, queriam comer alguma coisa diferente, não queriam o trivial. Foi isso que nos salvou
Pai e filho tinham um projeto de expansão da marca, levando as operações para o Itaim. Após um longo período de procura por imóveis na região oeste, a dupla deu de cara com um galpão com o mesmo tamanho daquele em que funcionavam na Barra Funda. Gostaram, compraram e iniciaram a reforma. Tudo pronto, a crise sanitária fechou as portas da casa um mês após a inauguração, em fevereiro de 2020.
“Foi um senhor trauma”, ri José Carlos. “Mas foi também a chance de a gente se reenviar, daí veio o delivery”, lembra Caíque. “O bacalhau é um prato que viaja bem, não perde a qualidade. E as pessoas trancadas em casa, sem poder sair, queriam comer alguma coisa diferente, não queriam o trivial. Foi isso que nos salvou”.
Crise superada, a casa precisou trocou de endereço, vítima da especulação imobiliária. Mas, a despeito das mudanças da cidade e das dificuldades que o bairro enfrenta hoje, a Barra Funda ainda é o principal endereço da casa, que leva a sério o conceito de tradição. Em sua equipe tem funcionários sempre com muito tempo de casa – o mais antigo, já beira os 40 anos de trabalho.
É essa visão de ofício que José Carlos guarda na memória e pretende passar para frente, tanto com seu filho Caíque quanto com os jovens que procuram empregar no restaurante. Para o empresário, trata-se de uma missão social.
“Eu defendo que o adolescente precisa estudar, mas que é importante que ele aprenda um ofício, aprenda algo para ser encaminhado. É aquela coisa de ele ajudar na hora do almoço e ganhar um pouquinho de dinheiro. Ele vai estar dentro do ambiente de trabalho e é muito melhor do que estar na rua. Eu criei meus filhos assim e, na intuição, acabei acertando”.
Além de Caíque, que enveredou para a gastronomia, José Carlos tem outro filho, esse na área da engenharia, o que também estabelece laços com a sua história. O empresário é formado em engenharia civil, embora nunca tenha exercido. “Às vezes, as pessoas demoram muito para entrar no mercado e isso pode ser danoso. O cara fica na rua e pode virar aviãozinho do tráfico. Nós temos o poder de mudar isso”, acredita.
“Eu defendo que o adolescente precisa estudar, mas que é importante que ele aprenda um ofício, aprenda algo para ser encaminhado. É aquela coisa de ele ajudar na hora do almoço e ganhar um pouquinho de dinheiro. Ele vai estar dentro do ambiente de trabalho e é muito melhor do que estar na rua. Eu criei meus filhos assim e, na intuição, acabei acertando”.
Além de Caíque, que enveredou para a gastronomia, José Carlos tem outro filho, esse na área da engenharia, o que também estabelece laços com a sua história. O empresário é formado em engenharia civil, embora nunca tenha exercido. “Às vezes, as pessoas demoram muito para entrar no mercado e isso pode ser danoso. O cara fica na rua e pode virar aviãozinho do tráfico. Nós temos o poder de mudar isso”, acredita.
Pai e filho concordam que o ramo gastronômico tem também um viés social e político. E em ano de eleição, dizem que esperam de um próximo prefeito eleito um trabalho muito simples:a zeladoria. Caíque e José Carlos acreditam que o mais importante é que o prefeito eleito consiga manter as ruas mais limpas e iluminadas, o que ajuda na sensação de segurança das pessoas.
Para a dupla, parte do processo de perda de interesse das pessoas pela Barra Funda vem dessa mudança substancial que a cidade passou e pela falta de um olhar mais cuidadoso para uma região tão significativa. “As pessoas usam as ruas como depósito de lixo e ninguém faz nada, tudo isso contribui para que se torne cada vez mais complexo investir na região”, diz Caíque.
A casa até entrou com o processo de adotar uma praça na região, o que quase não foi possível pela quantidade de burocracia e impeditivos da prefeitura. Ao todo, foram investidos R$20 mil para a revitalização da praça somado a um gasto mensal que pode chegar aos R$1.500.
Para a dupla o ideal seria que houvesse uma parceria com a prefeitura, mas não há esse movimento por parte da máquina pública. Assim sendo, pai e filho são categóricos sobre o que esperam da prefeitura. “Se o governo não atrapalhar, já ajuda muito”.
SERVIÇO
Bacalhau, Vinho & Cia – Seg., das 11h30 às 16h; ter. a sáb., das 11h30 às 23h; dom., das 11h30 às 17h. Endereço: av. Pacaembu, 71, Barra Funda, região oeste | r. Pedroso Alvarenga, 620, Itaim Bibi. Tel: (11) 3666-0381 (Barra Funda) e (11) 3071-4077 (Itaim Bibi). @bacalhauevinhocia