Há algo de revolucionário em O que tem na Cozinha?, peça em que o ator Eduardo Estrela apresenta um cardápio de histórias e pratos. Comida e histórias são alinhavados entre a memória afetiva do artista e depoimentos colhidos de chefs, garçons e outros profissionais do ramo. A montagem cumpre temporada no MoDi Giardino, restaurante especializado em culinária italiana.
A revolução está no formato em que o ator recebe o público para provar um jantar em cinco tempos. Pratos dialogam com a dramaturgia do jornalista Dirceu Alves Jr. e da produtora Daniela Angelotti. Estrela enfrenta o tabu do entretenimento quando põe a força dessas histórias à prova com os pratos que saem da cozinha do chef Diogo Silveira.
Embora proponha uma interação entre teatro e gastronomia, a montagem enfrenta (previsível) dificuldade em manter atento um público já disperso pela própria natureza do ambiente. À medida que os pratos chegam, a tendência é que a dispersão cresça. É desafiador não apenas para a performance de Estrela, mas também para uma conexão íntima com o espetáculo.
Há, contudo, uma inteligência fina em O que tem na Cozinha?. A seleção de histórias passeia ao largo de qualquer profundidade, resultando saborosas exatamente pelo teor leve que surgem em cena. O trabalho se assemelha a boa seleção de crônicas, como as que compõem Não é Sopa (1994) e O Frango Ensopado da Minha Mãe (2015), títulos referenciais da obra da cronista e cozinheira mineira Nina Horta (1939-2019).
Estrela dá vida a personagens múltiplos. Entram em cena um cozinheiro nordestino que encontrou uma forma de viver de sua paixão pela culinária e a matriarca de uma família, cujos almoços guardam memórias da vida. Resulta tocante.
Em paralelo, o chef Diogo Silveira apresenta uma seleção de pratos em cinco tempos que têm início com uma taça de vinho tinto. Servido como cortesia, o português Júlia Florista harmoniza bem com um antepasto surpreendente, feito com berinjela, azeitona e abobrinha. A casa oferece também uma carta de drinks que não estão inclusos no valor do espetáculo + jantar (R$380, duas pessoas, ou R$210, individual).
Na carta de mocktails (sem álcool), é possível provar um bom mix de schweppes citrus, maracujá, tangerina e espuma de gengibre (Modi da Mônica, R$20), ou uma mistura de água com gás, suco de limão, hortelã e gelo (Virgin Mojito, R$20). A primeira opção é mais saborosa.
Já entre os drinks (também fora do valor do projeto), há quatro opções, desde o clássico Negroni (R$48) até o Jeanne (R$38), feito com vodka, caju, tangerina, gengibre e gelo britado, e que harmoniza bem com a entrada, uma deliciosa polenta de ragu com linguiça, que apresenta um pequeno ardor apimentado, e expande as propriedades da vodka e do gengibre. Vale experimentar.
Com algumas possíveis alterações, o cardápio de O que tem na Cozinha? pode variar o prato principal, ainda que o destaque seja o excelente arroz caldoso de cupim com acelga chinesa.
Há uma simplicidade bonita na encenação dirigida por Daniela Angelotti. Estrela desossa seu próprio ofício e, sem subterfúgios, abre mão de figurino e cenário para utilizar objetos cênicos e confiar no poder da palavra. É decisão inteligente que dialoga com o desafio de seduzir um público que, também pelo caráter informal da apresentação, parece ter alguma dificuldade em embarcar com ênfase na proposta. Faz parte.
Entretanto, mérito do ator, o desafio se torna menos impeditivo e mais uma diversão, mostrando que, contra os prognósticos, há pontos fluentes de contato entre as artes dramática e gastronômica. Vale a experiência.
COTAÇÃO: * * * (BOM)SERVIÇO
O Que tem na Cozinha – qua. e qui. até o dia 26 de setembro às 20h. Endereço: MoDi Giordano – r. Dr. Cândido Espinheira, 431, Perdizes, região oeste. @modi.casagiardino. Ingressos: R$165 (meia, individual), R$210 (inteira, individual) e R$380 (para duas pessoas). Compras via Sympla.